Para além das datas e decretos reais que marcam oficialmente o dia instituído como “Dia do Ceará” podemos fazer outras considerações abordando essa interessante temática nos aspectos históricos e sociológicos.
A questão imagética é uma delas. Diferentemente de outras capitanias que tiveram suas cidades e vilas nos séculos XVll e XVlll representadas através de pinturas tanto acadêmicas quanto científicas, a Capitania do Siará Grande nesse aspecto foi pouco prestigiada. Mesmo as vilas mais prósperas como Aracati, Sobral e Icó, de imagem desse período pouco ou nada ficou registrado.
Pelas comemorações do Dia do Ceará é que mais evidente fica essa lacuna, ou melhor, a falta dela, tendo que contentar-se o autóctone com descrições esparsas do seu meio físico registradas em diário de viagem de um ou outro estrangeiro que aqui passou, ou as cartas oficiais enviadas à Coroa dando conta da situação de extrema pobreza que vivia a Capitania com suas vilas e povoados.
Raimundo Girão nos dá uma ideia dessa precariedade que permeava todos os níveis da vida da capitania, “Muitas Câmaras, talvez a maioria, não tinha casa própria e funcionava pobremente em casas alugadas. Haja vista a do Aquiraz que, depois de trinta anos de instalada, ainda se reunia em prédio de aluguel, mísero e sem conforto”. (GIRÃO, 1962, p. 138)
Luis da Mota Féo e Torres foi o último Capitão Mor e Governador do Ceará com dependência de Pernambuco, nenhum legado nos deixou nesse sentido quando do término do seu mandato em agosto de 1799, passou o cargo a um governo de interinidade. João Brígido “pinta-o como homem de grande avareza e de espírito tacanho. (Res. Cron., pág. 120) e Araripe diz a pág. 107 de sua História do Ceará: ‘Foi este capitão-mor de caráter fraco e sumamente tíbio no governo’.” (INSTITUTO DO CEARÁ, 1890, p. 38)
Bernardo Manuel de Vasconcelos nomeado pela Rainha Dona Maria l como o primeiro governador livre das peias administrativas de Pernambuco, aqui chegando, logo elaborou um minucioso relatório sobre os aspectos gerais da Capitania do Siará Grande com informações que colheu de Targine e outros que o precederam. O documento privilegia relatos pertinentes à economia da Capitania. Pouco fala dos aspectos físicos e nenhuma imagem foi produzida nesse período.
D. Maria I
s.d., óleo sobre tela
Museu Imperial, Petrópolis, Brasil
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Quadro de autor anónimo.
D. Maria I subiu ao trono em 24 de Fevereiro de 1777, 26.º monarca português.
Esse relatório foi registrado pelo Barão de Studart e publicado em seu livro “Notas para a História do Ceará” e aqui replico alguns trechos por ser o documento deveras extenso.
“Ela não é datada mas de seu conteúdo infere-se perfeitamente a época e o local em que traçou o autor”
“É a Capitania do Ceará Grande bem considerável pela sua grandeza, como mostra um mapa bem circunstanciado, que o mesmo hábil Targine traçou de todo o seu território. Pela sua ilustração se conhece ser o ar saudável, o céu sereno, campinas amenas, serras fertilíssimas, rios caudalosos, maiormente na estação das águas”.
“Examinando o mapa vejo a Capitania do Ceará tem sete povoações de índios denominadas – Arronches, Messejana, Soure, Monte-mor-velho, Vila Viçosa, e Crato, hoje consideravelmente diminutas pelo vexame que lhe causa o bárbaro costume dos governadores, ouvidores, diretores e viários arrancarem os filhos dos braços dos seus pais, e os mandarem a servir em diferentes Capitanias, donde jamais voltam a sua pátria debilitando-se assim a cultura tão necessária à cultura daqueles terrenos”.
“Das vilas e povoações da Capitania estabelecidas pelos europeus e seus descendentes a que tem a primeira preferência é a vila de S. Cruz de Aracati, situada as margens do rio Jaguaribe, aonde a oportunidade da barra estabelece a principal feitoria das carnes secas e morrem todos os anos para cima de cinquenta mil reses, se embarcam mais de vinte mil arrobas de algodão: A segunda grandeza é a de Sobral assentada as margens do Rio Acaracu, de igual feitoria e comércio para muitas embarcações e especuladores das Capitanias de Pernambuco e Bahia; a que entra na terceira ordem é a Vila do Icó, estabelecida no centro da Capitania na distancia de mais de sessenta léguas do porto do mar, que serve de único depósito das produções do interior do país para serem conduzidas as vilas marítimas no tempo oportuno da navegação. A Vila de Granja, que domina a foz do Rio de Camocim, tem em si um grande comércio de carnes e algodão, que atrai pelo seu cômodo muitas embarcações e traficantes das Capitanias circunvizinhas, vila tão celebrada na história do Padre Vieira, pela pesca, que nela havia do coral e âmbar-gris. É de menor extensão e povoação a Vila da Fortaleza onde reside o governador e se acha acantonada uma única companhia de tropa paga, que guarnece a fortaleza da Assunçao estabelecida nas praias do oceano. O mesmo se observa na Vila de Aquiraz, cabeça de Comarca, e residência do ouvidor-geral, aonde os jesuítas tinham o seu colégio”. (STUDART, 2004, p. 493-500)
Raimundo Girão destaca Aracati, de comércio próspero e um bom grau de civilidade da população, “fazem a vila assás recomendável, juntamente a isso uma agradável e regular arquitetura nas suas casas, e de grande número delas os donos possuem avultados cabedais.” (GIRÃO, 1962, p. 152)
Uma pequena descrição de Fortaleza já do ano de 1810 (NETTO, 2014, p. 17) nos dá uma pálida ideia da precariedade das habitações e instituições na capital,
"Em 1810, as casas de Fortaleza tinham apenas o pavimento térreo. Havia poucas ruas – todas sem calçamento –, três igrejas, o palácio do governador, a Casa de Câmara e Cadeia, a Alfândega e a Tesouraria. O porto era ruim e eram grandes as dificuldades e os acidentes no momento de embarque e desembarque dos ‘vapores’."
Os aspectos administrativos também merecem ser citados. Depois da autoridade do capitão mor a figura do ouvidor despontava. A Provedoria de funções fiscais no Ceará passou a ser exercida pelo Ouvidor após a separação da Capitania do Rio Grande do Norte por Ordem régia de 16 de setembro de 1697.
As mudanças na administração fazendária e contábil na capitania do Ceará coincidiram com a instituição do governo autônomo, ou melhor, a instituição do governo autônomo possibilitou a instalação desse importante órgão administrativo. A Junta da Fazenda era de grande importância por ser responsável pela administração da arrecadação nas capitanias, e sua criação foi uma tentativa de modernização do aparelho de estado visando uma revitalização econômica. A criação da
Junta da Fazenda na capitania do Ceará é de 24 de janeiro de 1799 e substituiu a antiga provedoria real da fazenda que acumulava as funções judiciárias e administração fazendária. Era subordinada ao Real Erário, sendo aqui presidida pelo governador ou capitão general da capitania. O Ouvidor acumulava a função de jurisdição contenciosa, quando atuava para solucionar um litígio. (GIRÃO, 1962, p. 147-148)
Com relação ao edifício que abrigou a Junta da Fazenda, o Barão de Studart esclarece;
”O lugar que primitivamente funcionou a Junta da Fazenda foi por cima do antigo calabouço no prédio que é hoje ocupado pelo 11º Batalhão; dai passou-se para o edifício à Rua Conde d`Eu, hoje Sena Madureira, em que também residiram os Governadores e os membros da Comissão Militar, e cujo atual proprietário é o Sr. João da Silva Vilar”. (STUDART, 2004, p. 501)
É fato que a situação econômica da capitania, tanto tempo sujeita as ordens de Pernambuco tenha inibido ou retardado seu desenvolvimento, consequentemente um ambiente deveras pobre e rústico não suscitasse maiores arroubos artísticos por parte de uma população pouco erudita. Mesmo da parte dos governantes, os mais dedicados e esclarecidos, desenhos e pinturas poderiam parecer supérfluos diante de dificuldades financeiras, secas constantes e por vezes epidemias contagiosas.
Quanto ao processo administrativo, sem dúvida o grande salto foi a separação da capitania de Pernambuco, que introduziu avanços, entre tantos benefícios propiciou a comercialização direta com a Europa.
Para o Dia do Ceará é interessante lembrar-se da origem pobre da Capitania nos séculos XVll e XVlll, para se valorizar o espírito desbravador do seu povo, que com empreendedorismo e dedicação à terra cearense, consegue colher os primeiros frutos a partir de século XlX, num crescente de desenvolvimento de sua economia, educação e cultura.
Viva o CEARÁ!
Armando Farias
GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará. 2. ed. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1962.
INSTITUTO DO CEARÁ. Seiscentas datas para a Chronica do Ceara na 2ª metade do Século XVIII. Revista trimestral do Instituo do Ceará, Fortaleza, Anno IV, p. 38 -40, 1º trimestre de 1890, Tomo IV. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/144843/per144843_1890_00001.pdf. Acesso em 05 jan. 2022.